Por Beatriz Brandão
Conhecido pela criação de heterônimos que têm nome, sobrenome, data de nascimento e personalidades singulares, Fernando Pessoa é autor de uma obra extremamente complexa e fascinante. Apesar de ser difícil identificar quando realmente está falando sobre sua própria vida, em “O Livro do Desassossego”, o autor escreve uma autobiografia. Se escondendo na figura de Bernardo Soares, um semi-heterônimo que trabalha como ajudante de guarda-livros em Lisboa, Pessoa reflete profundamente sobre suas experiências, seus anseios, seus pensamentos e suas dúvidas a respeito da vida de forma muito íntima, mas pouco explícita.
O livro, que é escrito em forma de diário, e que pode ser lido em qualquer ordem, é considerado a obra-prima do poeta português e foi lançado 47 anos depois de sua morte. Fernando Pessoa ficou cerca de 20 anos escrevendo os textos que compõem a obra e que não têm início nem fim, são apenas trechos curtos de suas reflexões. O único momento em que assina com seu nome é no prefácio do livro, onde ele relata como conheceu Bernardo e como tudo que está no livro chegou até ele.
Fernando Pessoa escreve que, durante um período de sua vida, jantava sempre no mesmo lugar e no mesmo horário, em um restaurante comum da cidade. Ele diz que o lugar era simples, ficava em uma sobreloja e se assemelhava a uma taberna, onde se reuniam todos os homens desinteressantes, “uma série de apartes na vida”. Depois de vários dias frequentando o mesmo local, passou a reparar em um homem com aparência cansada e pálida, vestido com certo desleixo. Mais um homem desinteressante, mas que acabou chamando sua atenção. Eles se cumprimentaram um dia e, de repente, passaram a se falar. Fernando contou que era escritor e o homem, que viria a ser Bernardo, revelou que na falta de algo mais interessante para fazer, também escrevia. Daí nasceu uma amizade meio torta, mas que resultou na publicação de “O Livro do Desassossego”, uma série de trechos que Bernardo confiou a Fernando para que pudessem ser publicados.
A partir daí, Bernardo Soares assume o controle da história e, logo na primeira parte do livro, faz sua apresentação. Ficamos sabendo que ele mora na Rua dos Douradores, que seu patrão se chama Vasques e que ele trabalha como ajudante do guarda-livros Moreira. Ele também diz que não sabe o motivo, mas que não acredita em Deus e prefere viver sozinho. Apesar de todos os sonhos que possui, não se frustra com a realidade, apenas imagina o que poderia acontecer se sua vida fosse diferente. De cara, Bernardo se revela uma figura ímpar e complexa, mas que tem os mesmos questionamentos que qualquer outro ser humano poderia ter.
A vida, a morte, as relações, as desilusões, as incertezas e o tempo são temas que se repetem pelos textos. Bernardo Soares usa da filosofia e das metáforas para contar ao leitor o seu dia a dia que é, ao mesmo tempo, desinteressante e intrigante. Bernardo não fez nenhum curso, não se casou, não tinha amigos e era pouco ligado à sua família, mas possuía uma visão de mundo invejável. Os poucos detalhes e os acontecimentos corriqueiros se tornam narrativas impecáveis a partir de sua escrita. É quase que uma romantização trágica de sua vida comum.
É provável que, no primeiro contato, o leitor estranhe o formato da obra. Afinal, os textos possuem pouca ou até nenhuma relação entre si. São pensamentos soltos anotados em sequência, mas que não seguem uma linearidade. Mas essa é uma das belezas da obra, justamente por mostrar as diversas facetas humanas: cada dia somos alguém refletindo sobre questões diferentes. Parando para pensar racionalmente, nossos pensamentos também não possuem muita ligação entre si. Se fossemos anotar tudo que se passa pela nossa cabeça, é possível que teríamos registros tão confusos quanto os de Bernardo.
Em um dos trechos mais conhecidos do livro, Bernardo Soares reflete sobre quão complexos podem ser os sentimentos. Ao afirmar que “o coração, se pudesse pensar, pararia”, o autor do diário reforça o que já sabemos, mas muitas vezes tentamos negar: não se pode mandar no coração. O que sentimos, muitas vezes foge da racionalidade e não há problema nenhum em admitir isso. Essa é a beleza de sentir, não pensar.
“O Livro do Desassossego” é repleto dessas frases impactantes e que nos fazem reavaliar o que temos como verdade. Não é uma obra para ser lida em poucos dias, mas sim para ser minuciosamente aproveitada e cuidadosamente absorvida. Mesmo após meses para terminar o livro, é normal sentir que ele não chegou ao fim. E a cada nova visita é possível aprender mais e perceber detalhes escondidos. A leitura é densa, mas cada segundo utilizado para entender o que se passa na cabeça do autor vale a pena.
Os pensamentos de Bernardo Soares (e de Fernando Pessoa) ecoam tanto na nossa realidade atual quanto se estivéssemos na Lisboa do século XX. Seus medos, seus desejos e suas dúvidas são os medos, os desejos e as dúvidas que temos hoje em dia. Podemos encontrar identificação em sua personalidade forte e em sua mente conturbada pelos mistérios da vivência humana. E é até reconfortante perceber que não somos os únicos à procura de respostas durante essa jornada louca que é a vida. Por isso, nos enxergamos profundamente em cada trecho lido.