Por Beatriz Brandão
“A gente passa a vida pelejando com o dilema de existir ou de desistir, com o que é bom e o que é ruim, o certo e o errado, a morte e a vida. Essas coisas não se separam. O lugar que dói é o mesmo que se sente arrepios.”
Até que ponto somos capazes de perdoar quem amamos? Essa com certeza é uma das muitas perguntas que ficam na cabeça de quem termina de ler “Tudo é Rio”, o segundo livro mais lido de 2021. Com uma maestria poética, a autora mineira Carla Madeira traz em seu livro de estreia uma história cheia de nuances e questionamentos morais que passam pelo amor, pela traição, pela dor e pelo arrependimento de forma tão potente, que é difícil contar nos dedos das mãos quantas vezes perdemos o fôlego durante a leitura. A trama tem como personagens principais três pessoas que vivem altos e baixos em uma cidadezinha que não é especificada.
Dalva, Venâncio e Lucy têm suas vidas entrelaçadas de uma hora pra outra e de uma forma que, provavelmente, nenhum deles esperava. Dalva e Venâncio são o casal perfeito, invejados por todos os vizinhos pelo amor que sentem um pelo outro. Desde o momento em que se viram, nunca mais desgrudaram. Fazem tudo juntos, sorrindo, esbanjando uma felicidade irrestrita e aparentemente inabalável. Lucy é a prostituta mais famosa e desejada da cidade. Exerce sua função com prazer, gosta do que faz e vive escandalizando a a todos com sua forma livre de viver a vida. Ela tinha tudo o que queria, até ser rejeitada por Venâncio.
É a partir daí que a história começa a tomar forma. Sabemos que algo muito grave aconteceu com o casal e, que, após essa tragédia, a relação dos dois nunca volta a ser a mesma. Eles param de se falar e a alegria que sentiam juntos, da mesma forma que tinha surgido de forma avassaladora, se perdeu no tempo. Dalva agora era uma mulher sem vida, que saía todo dia e passeava pela cidade na intenção de evitar o contato com o marido. Já Venâncio tinha se tornado um homem triste, cabisbaixo e frequentador assíduo da Casa de Manu, prostíbulo onde Lucy trabalhava. É assim que eles se conhecem e é assim que Lucy decide que precisa ter aquele homem de qualquer jeito.
O livro passeia pelo tempo e não segue uma linearidade. Passamos pelo passado e pelo presente dos personagens de forma intercalada, o que deixa tudo mais interessante. Bem aos poucos, visitamos a infância e a juventude de cada um, conhecemos suas famílias e passamos a entender as razões que os fizeram chegar naquele ponto. Mesmo assim, a tragédia que abalou o casamento de Dalva e Venâncio sempre retorna, o que nos faz sentir um pouco da dor dos dois pelo que aconteceu. O luto pelo que poderiam ter vivido se não tivessem tomado certas decisões paira pelos acontecimentos e, a cada página, é quase possível tomar para si o sofrimento latente dos personagens.
O período em que estive lendo esse livro foi intenso. É inevitável julgar se as ações dos três são certas ou erradas, mas ao longo da história somos forçados a nos desprender desses juízos de valor. Quem nos garante que não tomaríamos as mesmas decisões se estivéssemos no lugar deles? Será mesmo que podemos decidir se alguém é o vilão ou o mocinho da história por causa de um passo dado em um momento de desespero? Quando finalizei a obra, tive certeza de que a resposta era não.
“Tudo é Rio” é uma experiência que vale a pena ser vivida. É um choque de realidade, é a vida em sua forma mais nua e crua. É uma história sobre pessoas reais que erram, sofrem, passam por dores inimagináveis e lidam com isso da forma que podem. Não existe bem ou mal. Existe o acontecimento e o que as pessoas fazem a partir dele. E a nós, diante dessas dificuldades, cabe apenas respeitar e tentar entender. Afinal, ”quem vê de fora faz arranjos melhores, mas é dentro, bem no lugar que a gente não vê, que o não dar conta ocupa tudo.”

Carla Madeira consegue nos manter vidrados no livro, querendo descobrir como tudo vai acabar e o que vai acontecer no próximo dia. De forma delicada, mas ao mesmo tempo arrebatadora, a autora consegue fazer com que o leitor se sinta parte da história quando lança os questionamentos morais que obrigam os personagens a tomarem decisões muito difíceis. O fato de o narrador ser onisciente e não ser um personagem envolvido na trama contribui muito para esse clima de curiosidade e tensão. É quase como se estivéssemos ouvindo alguém contando uma história – ou até mesmo uma fofoca – chocante de pessoas conhecidas.
Isso, junto com a escrita distinta e impecável de Carla, cheia de frases impactantes, fez com que “Tudo é Rio” se tornasse um dos melhores livros que já li em toda a minha vida. A cada página é possível encontrar uma reflexão poética da autora sobre a vida. Me peguei, por diversas vezes, refletindo sobre a minha própria vivência e sobre o sentido do amor, da raiva e da vingança. Esses sentimentos complexos são tão bem descritos que quase se tornam palpáveis para quem lê.
Falando nisso, a autora fala lindamente sobre o amor. Em uma das frases mais destacadas da obra, ela define em poucas palavras esse sentimento tão nobre e potente que só entendemos quando sentimos: “Mas e o amor? O que é senão um monte de gostar? Gostar de falar, gostar de tocar, gostar de cheirar, gostar de ouvir, gostar de olhar. Gostar de se abandonar no outro. O amor não passa de um gostar de muitos verbos ao mesmo tempo.” E lendo o livro finalmente entendemos isso. Amar é gostar muito. Gostar tanto que não medimos o que fazemos pelo outro. Gostar tanto, que aprendemos a ver a vida de outra forma. Tanto que nos dá força para atravessar nossas maiores tempestades e enfrentar as destruições.
Não é atoa que Carla Madeira virou um fenômeno. Sua capacidade de contar histórias é incrível e esse livro é uma prova disso. A literatura brasileira segue viva, nos entregando emoção aos montes e nos ensinando a ver as coisas com mais cuidado e carinho. Vale a pena se deliciar sem restrições com “Tudo é Rio” e se encantar com a vida como ela é.