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Quando o cuidado se torna invisivel: O drama do abandono de mulheres idosas

Por João Guimarães 

Lavar, passar, cozinhar e servir. O trabalho de cuidado, em uma sociedade machista, foi historicamente imposto às mulheres, gerando consequências mais atuais que nunca, é o que revelam os dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), de 2019, apontando que 85% do trabalho de cuidado, no Brasil, é realizado pela mulher. 

A visão patriarcal que impõe o trabalho doméstico às mulheres, quase como se o papel de cuidar e ser mulher fossem sinônimos, cria também um “prazo de validade”. Para muitas famílias, quando a mulher já não consegue exercer o papel que lhe foi imposto desde a infância — cuidar como forma de servir —, ela perde sua “utilidade”. Esse processo resulta em outro grande problema: o abandono de mulheres idosas.

No último ano, o número de denúncias de abandono da pessoa idosa aumentaram 855%, segundo o Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania (MDHC), abandonos que acontecem junto a uma crescente da feminização da velhice, demonstrando o quanto essa população segue sendo vulnerável e invisível diante dos olhos patriarcais e etaristas.

O abandono de mulheres idosas é uma questão de responsabilidade pública. O Estatuto da Pessoa Idosa institucionaliza a responsabilidade de toda a sociedade diante da obrigação de assegurar, com prioridade, a efetivação do direito à vida, à alimentação, à dignidade, ao respeito e à convivência familiar e comunitária. Porém, mesmo após 21 anos da criação do estatuto, os casos de violência seguem crescendo, somente nos três primeiros meses de 2024, já foram registradas 42.995 denúncias de violação contra a pessoa idosa na Ouvidoria Nacional de Direitos Humanos (ONDH). 

No Espírito Santo, a situação também é alarmante, no primeiro semestre de 2024, as denúncias de violência contra idoso aumentaram 70%, com 2.255 denúncias, em relação ao mesmo período do ano passado, com 1.322 queixas, segundo a ONDH. Pesquisas recentes também constatam que a violência contra o idoso possui um perfil em terras capixabas,  o Anuário de Segurança Pública do Espírito Santo relatou que a maioria das vítimas, cerca de 51,69%, são mulheres e possuem entre 60 e 64 anos.

São 08h00. O café da manhã está na mesa e todos os copos estão identificados, cada um com o seu nome. No abrigo de Idosos Abel Lino Portela, localizada no município da Serra, as idosas sentam umas perto das outras, conversando elas se distraem no lento caminhar do dia,  na falta de afeição familiar, a amizade estabelecida entre elas e o vínculo com os profissionais do abrigo se tornam uma forma de afeto, uma nova família. 

Imagem do Abrigo Abel Lino Portela

Ao todo, 5 idosas vivem no abrigo, porém, nem sempre foi assim, Sérgio Neto, assistente social da instituição, conta que recentemente o abrigo perdeu a J*, cuja identidade será preservada com o intuito de  resguardar a sua pessoa. J* dedicou boa parte de sua vida cuidando de outras pessoas, aos 30 anos se tornou babá de uma criança em uma casa de família, cuidou dia após dia e ali ela ficou até chegar à terceira idade. À medida que envelheceu, a sua presença não era mais útil na visão da família e passou a incomodar. Já não era mais vista como a mulher que passou a vida cuidando, mas como alguém incapaz de realizar as mesmas tarefas de antes, e em um momento de fragilidade, foi rejeitada pela família e foi colocada em um porão sofrendo agressões físicas e psicológicas, recebendo pão e água para se alimentar. Ela foi resgatada aos 81 anos e ficou no Abrigo Abel Lino Portela. Foi ali, ao fim de sua vida, que J* finalmente pôde descansar, cercada de respeito e afeto.

J* não foi a única mulher idosa a sofrer tamanha violência. M*, que também terá a sua identidade protegida, carrega consigo marcas em seu corpo e em sua memória, aos 96 anos, foi resgatada. Após perder seus vínculos familiares, viu a sua casa ser invadida por um casal de criminosos, que se apossaram de seus bens e cartões, ela foi forçada a viver nos fundos de sua residência em condições desumanas, passava os dias e as noites em uma espécie de galinheiro. Quando finalmente foi resgatada pelo Abrigo de Idosos Franciscano, em Nova Almeida, ela e os profissionais da instituição foram ameaçados de morte, pelo casal de criminosos, caso a instituição permanecesse dando assistência a M*. Com isso, foi necessário solicitar a transferência para outro abrigo, e hoje ela reside no Abel Lino Portela. Ao chegar na instituição, as enfermeiras do local identificaram diversas feridas por todo o seu corpo, desde a cabeça até as partes íntimas, violência comprovada posteriormente com o exame de corpo de delito.

“Difícil é você conseguir uma vaga em uma ILPI (instituição de Longa Permanência para idosos), porque a gente como terceiro setor recebe muito pouco, para conseguir garantir o direito de acolher essas pessoas em vulnerabilidade, que aumentou bastante, eu tenho várias solicitações na fila de espera”, diz Neto. Para garantir os direitos da pessoa idosa, o abrigo também conta com a ajuda de doações e trabalhos voluntários. Por parte do Governo Federal, a situação se agrava ainda mais, “a gente não recebe recurso federal desde a gestão do Bolsonaro”, critica Sérgio.

“Precisamos de uma gestão que investe mais na assistência social, principalmente na área da pessoa idosa, porque é uma população que está crescendo muito”, critica o assistente social. Em ano de eleições municipais, os olhos se voltam para os planos de governos dos candidatos à prefeitura, mas poucos abordam realmente a realidade das mulheres idosas. Na cidade da Serra, a mais populosa do Espírito Santo, tem sete candidatos à prefeitura: o Antônio Bungenstab (PRTB), o Audifax Barcelos (PP), o Igor Elson (PL), o Pablo Muribeca (Republicanos), o Professor Roberto Carlos (PT), o Weverson Meireles (PFT) e o Wyson Zon (Novo). Dos sete planos de governo, nenhum apresentou um plano concreto que contemple as especificidades da mulher idosa. 

A reportagem entrou em contato e questionou todos os candidatos à prefeitura da Serra do primeiro turno, para indagar a falta de propostas voltadas para as mulheres idosas. Até o momento, apenas o candidato Igor Elson retornou, ele disse: “Reconhecemos a gravidade dessa situação e, embora o Plano de Governo mencione ações para a população idosa, sabemos que a questão das mulheres idosas abandonadas precisa de mais destaque. Não podemos fazer promessas neste momento, mas vamos analisar essa questão mais profundamente, com o intuito de desenvolver propostas que atendam às necessidades específicas dessa população e garantam um suporte mais efetivo.”

Porém, a ausência de propostas voltadas para essa população exemplifica a falta de visibilidade da mulher idosa, que necessita ser vista para que, enfim, o Estatuto da Pessoa Idosa seja respeitado. Como observa Sérgio Neto, as políticas públicas, na área da assistência social, ainda priorizam a destinação de verba para a infância, o que também é de grande importância, porém, a falta de verba para a terceira idade, e especialmente para as mulheres idosas, as coloca como um setor secundário, o que pode ser explicado como o resultado de uma sociedade etarista, que enxerga a criança com símbolo do futuro, da juventude e diminui a figura da mulher idosa, como frágil e incapaz.

Para a transformação da situação atual é preciso ir além de promessas vazias, é necessário um compromisso real com a dignidade dessas mulheres. “Meu sonho é que a política voltada para pessoas idosas seja ampliada, com mais recursos. Nós não temos nenhum abrigo para pessoas idosas, ILPI, público na serra, todos os quatro são privados de caráter filantrópico, e recebem o mínimo para atender a população que é gigantesca”, conclui Sérgio Neto. É importante que o governo encare a assistência à mulher idosa como prioridade, para que o abandono e a violência não sejam o destino de tantas vidas dedicadas ao cuidado dos outros.

6 Comments

  1. rarai

    que texto bom!! é muito triste que isso aconteça e muito preocupante que os nossos governantes ainda não estejam pensando nessa parcela da população. a porcentagem de idosos no país aumenta a cada ano, então por que a qualidade de vida deles não é posta como prioridade para o governo?

  2. Larissa Mayra Lima Viana

    Que texto incrível e interessante, parabéns!

  3. Vitoria

    Matéria muito importante!!

  4. Nathalia Retz

    Sensacional está publicação
    É importantíssimo que haja políticas públicas para a população maior de idade
    Parabéns!!

  5. Francielly

    Matéria muito boa e importante.

  6. Nanny estevam

    Matéria sensacional!
    Me abriu os olhos para algo tão importante que eu nem sabia que acontecia tanto ou nas tinha parado para pensar sobre o assunto. Realmente uma população esquecida, que haja políticas públicas para eles 🙏🏼

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