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“Que horas ela volta?” – Como os traços de identidade regional, gênero e classe social determinam as relações sociais e de trabalho?

Por Alice Souza Raimondi

O filme de 2015 protagonizado por Regina Casé e dirigido por Anna Muylaert destaca a desigualdade social no Brasil por meio da relação entre a empregada doméstica nordestina e seus patrões paulistanos. 

Val é uma trabalhadora doméstica da cidade de São Paulo e trabalhou por cerca de 13 anos na mesma casa. Morando em um pequeno quarto no fundo da casa dos patrões, Val ocupa um espaço peculiar na dinâmica familiar do seu ambiente de trabalho, assim como tantas outras domésticas do Brasil – construído em cima dessa confusão entre as relações empregatícias e do lar. Por conta disso, o papel de doméstica transforma-se em uma pseudo extensão da família: ao mesmo tempo que Val é considerada uma segunda mãe para Fabinho – o filho de seus patrões – alguns limites ainda devem ser respeitados para a manutenção da estrutura vertical das relações sociais da casa.

Em busca de estabilidade financeira, Val teve que migrar de Pernambuco e deixar sua filha para ser criada com os avós e parentes. Tal realidade pessoal expressa a desigualdade estrutural entre as regiões do país, um mesmo território que abarca extremidades muito definidas. O caminho de Norte a Sul é marcado pelo desvanecer das oportunidades de emprego, deixando tantos nordestinos e nortistas reféns dos movimentos migratórios pungentes. Nesse contexto, vemos, nas últimas décadas, o esforço do Estado de diminuir as discrepâncias inter-regionais e qualificar os trabalhadores por meio das políticas afirmativas de acesso às universidades, dentre as outras que garantem maior dignidade às classes mais pobres.

Assim, depois de mais de uma década morando distante de sua mãe, Jessica reaparece na vida de Val e pede para morarem juntas enquanto ela fica em São Paulo para prestar o vestibular da USP, um dos mais concorridos do país. Val acata o pedido da filha, e embora sinta bastante culpa por não tê-la criado, ainda espera que ela se subordine às lógicas patronais. A nova configuração da casa também causa estranhamento aos patrões, tão acostumados com a mãe passiva e servil, tendo que conviver com a filha transgressora e determinada. Da subserviência à subversão: a lacuna geracional que separa mãe e filha, ambas pertencentes de um mesmo contexto, mas com posturas opostas em relação à estrutura de classes. Jessica não foi criada para servir e sua própria existência incomoda a patroa Bárbara, que constantemente pede a Val para impô-la limites. 

Ficam evidentes no filme, as forças sutis e poderosas que mantêm de pé as rígidas estruturas de classe. As regras implícitas sobre onde Val pode comer, andar e os lazeres que pode desfrutar são reviradas por Jéssica, que questiona a inflexível divisão entre “os que servem” e “os que são servidos”. Quando Val conta, acanhada, aos patrões que embora Fabinho não tenha passado no vestibular, sua filha havia passado, os patrões não conseguiram esconder seu descontentamento, como se fosse absurdo uma filha de doméstica ocupar um espaço social que o filho do empregador não conseguiu ou como se a vaga fosse de Fabinho por direito.

Tudo que a classe patronal conhece são seus direitos ideologicamente impostos, e quando essa lógica é perturbada – mesmo que a partir da mesma ideologia –, não há o que se possa fazer, do ponto de vista patronal, além de indignar-se. Para melhor exemplificar, vejamos o caso do patrão Carlos: um homem branco que pode acordar tarde e ter tempo de sobra para dedicar-se à sua arte e seus hobbies, visto que herdou propriedades de sua família e não precisa se preocupar com o sustento da casa. Da mesma forma, Fabinho não se empenha nos estudos, pois enxerga o mundo como espaços previamente apropriados, que lhe serão herdados de forma legítima. Entretanto, na passagem de gerações, a estrutura social modificou-se para abarcar parte da população pobre e assim incentivar o crescimento econômico do país, dificultando o acesso de Fabinho a lugares que ele não lutou para conquistar. Não foram as classes dominantes que modificaram-se, nem mesmo a ideologia, mas sob essa mesma estrutura foram encontradas novas formas de explorar a classe dominada, seja por meio de trabalhos qualificados ou não. Diante dessa situação, os patrões nada podem fazer, visto que aproveitam-se de outras formas dessa mesma estrutura.

Esse estranhamento de Fabinho, Carlos e Bárbara por conta do novo espaço que Jessica ocupa deve-se principalmente ao fato de que a ideologia esconde dos indivíduos o modo real como suas relações sociais foram produzidas e a origem das formas sociais de exploração econômica e de dominação política, de acordo com o conceito da filósofa Marilena Chauí. O direito à propriedade, por exemplo, apenas prevalece por sustentar uma estrutura análoga de poder econômico, caracterizando uma representação invertida do processo real, colocando como origem a lei, como se ela explicasse a posse exclusiva da terra por uma classe, quando, na realidade, é consequência de um processo histórico. Quando essa lógica altera-se para aprimorar as formas de exploração econômica, a família de patrões se ofende, já que é velado a forma que beneficiam-se desses processos de exploração, fazendo-os sentir que algo que deveria ser natural lhes foi tomado.

Outra particularidade do trabalho doméstico abordado no filme, é a naturalização da presença feminina nesses espaços de servidão, que também é consequência de um processo histórico. Daí a frase canônica “isso que você chama de amor, é trabalho não remunerado”.  A filósofa Silvia Federici em seu livro “Calibã e a Bruxa” já explica: longe de ser um resquício pré-capitalista, o trabalho doméstico não remunerado das mulheres tem sido um dos principais pilares da produção capitalista, ao ser o trabalho que produz a força de trabalho. Dessa forma, é evidente como os traços de identidade regional, gênero e classe social determinam as relações sociais e de trabalho, visto que são consequências de processos históricos que produzem e reproduzem a nossa realidade.

Em meio das diversas interpretações oportunizadas pela obra cinematográfica, não se pode negar a potência e a sagacidade do roteiro de Anna Muylaert e Regina Casé, que conseguiram tecer um trabalho espetacular e muito conectado com a realidade do nosso país. Por isso sempre reitero: grande é o nosso cinema nacional!

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