Por Deivid D’Paula
Começar uma resenha com uma citação pode parecer clichê, mas “Tudo é Rio” está longe de ser um livro comum. Ao tentar encontrar as palavras certas para expressar o impacto dessa obra arrebatadora de Carla Madeira, percebi que a melhor definição já estava nas próprias páginas do livro: “Brincamos de escolher, brincamos de poder conduzir o destino. Precisamos dessa ilusão para viver os dias de antes, dias em que podemos tudo só porque pensamos poder.” Essa passagem, discreta e quase imperceptível, resume perfeitamente a experiência da leitura — uma jornada intensa, repleta de emoções e reflexões que nos fazem questionar a própria vida e as escolhas que acreditamos controlar.
Lançado em 2014, Tudo é Rio foi o primeiro romance da escritora Carla Madeira, conquistando os leitores de forma orgânica, quase como uma maré que chega devagar, mas que, ao se fazer presente, domina completamente a paisagem. Nascida em Belo Horizonte em 18 de outubro de 1964, Carla é, além de uma escritora de sucesso, uma contadora de histórias que toca o íntimo de quem se permite ser levado por suas palavras. Sua escrita, leve e delicada quando precisa, mas igualmente cortante quando o momento exige, encontra em “Tudo é Rio” a perfeita expressão dessa sutileza poderosa.
A narrativa se espalhou pelo boca a boca, transformando-se em um dos maiores sucessos editoriais recentes no Brasil, com mais de 200 mil exemplares vendidos. Não foi preciso uma campanha agressiva de marketing para impulsionar a obra; bastou a experiência de leitura, a profundidade emocional que seus personagens carregam e a verdade contida nas entrelinhas.
O poder das palavras na construção de mundos
“As palavras permitem todo tipo de realidade”
Antes de se dedicar à literatura, Carla Madeira construiu uma carreira sólida na publicidade, atuando como professora de redação na Universidade Federal de Minas Gerais e como diretora de criação na agência Lápis Raro. Longe de se distanciar da sensibilidade artística, essas experiências profissionais parecem ter aprofundado ainda mais sua capacidade de observar as sutilezas da vida e das relações humanas, o que transparece de forma única em sua escrita. Esse olhar atento e delicado, que já cativou leitores em “Tudo é Rio”, não se limitou à sua estreia. Obras como “A Natureza da Mordida” e “Véspera” consolidaram seu lugar no cenário literário brasileiro, reafirmando Carla como uma autora que escreve com alma, e que consegue transformar o cotidiano em narrativa profunda.



A escrita de Carla Madeira ultrapassa a mera seleção de palavras bem posicionadas. Ela é uma alquimia de emoções que nos faz parar, respirar fundo e, por vezes, desmoronar. Sua obra nos atinge em um lugar profundo e, ao final da leitura, fica a sensação de que algo em nós também foi modificado, assim como o rio que molda as margens por onde passa.
Assim, com sua sensibilidade ímpar, ela nos presenteia com um romance que é, ao mesmo tempo, correnteza e calmaria. Que poderia facilmente ser lido apenas como uma história sobre amor, ódio, ciúmes e redenção, mas vai muito além. A obra reflete o fluxo da vida em sua totalidade, com todas as suas dores e belezas — tal como um rio que segue seu curso implacável, transformando tudo o que toca.
A dualidade humana: sombras e luz
“O pior de nós tem seus encantos. Somos feitos do bom e do ruim em porções imprevisíveis”
A narrativanos envolve desde a primeira página — ou melhor, desde a primeira palavra, como quem já leu pode confirmar. Em “Tudo é Rio”, somos apresentados a Dalva e Venâncio, um casal que vive tanto a intensidade do amor quanto a brutalidade de uma perda devastadora. O leitor é levado às profundezas de seu luto e dor, mas também à força que emerge do caos e da destruição. Quando Lucy, uma prostituta endurecida pelas circunstâncias da vida, entra na história, a trama dá uma reviravolta inesperada. Longe de ser a vilã que poderia parecer à primeira vista, Lucy é uma figura complexa e fragmentada, que desperta em nós não só compaixão, mas também uma reflexão profunda sobre nossos próprios julgamentos e preconceitos.
Uma das marcas mais notáveis de Carla Madeira é sua habilidade em criar personagens tão palpáveis que parecem respirar ao nosso lado. Venâncio, Dalva, Lucy, e até os coadjuvantes, como a afetuosa Aurora, revelam suas almas despidas ao leitor. Em seu universo literário, não há espaço para personagens rasos ou estereotipados; todos carregam suas dores, dilemas e contradições, refletindo a complexidade humana em toda a sua profundidade. Assim como nós, eles são feitos de sombras e luz, imperfeições e belezas, tornando impossível não se conectar com suas jornadas.
Dessa forma, no universo de “Tudo é Rio”, o que mais impressiona não são apenas os acontecimentos, mas a profundidade com que os personagens são levados ao limite de suas próprias existências. a autora nos apresenta figuras tão humanas que seus dilemas atravessam questões éticas e morais universais de maneira quase palpável. São personagens complexos, cujas histórias nos fazem refletir sobre o perdão, mesmo daquilo que parece imperdoável, e sobre a própria existência de um Deus em meio à dor e ao caos. É como se, ao acompanhar suas jornadas, fossemos forçados a encarar nossos próprios conflitos interiores.
Madeira vai além ao fazer escolhas narrativas ousadas. Em “Tudo é Rio”, não sabemos onde nem quando a história acontece. Não há uma localização geográfica ou temporal clara, mas há uma simplicidade no cenário que parece nos transportar para qualquer interior de qualquer país. Essa ausência de marcações cria uma liberdade para o leitor: podemos imaginar, podemos preencher as lacunas com nossas próprias vivências e memórias.
Carla também nos desafia ao não descrever detalhadamente a aparência física de seus personagens. Ela se preocupa em nos contar sobre suas almas, sobre como vivem e como se relacionam. O que importa não é como eles se parecem, mas sim o que sentem, as escolhas que fazem e os dilemas que enfrentam. Todos carregam suas próprias cruzes, e cada decisão parece um reflexo daquilo que nós mesmos vivenciamos em algum ponto de nossas vidas.
A beleza de “Tudo é Rio” está exatamente nisso — nos atravessamentos, nas perguntas sem respostas fáceis, e na profundidade com que a autora retrata a vida. O que poderia ser uma história simples, transforma-se em um espelho poderoso para os leitores, onde vemos refletidos os medos, as dores, as esperanças e a busca incessante por redenção, como um rio que não cessa de fluir.
A eternidade do passado
“O perdão não muda o passado, nunca se esqueça disso, meu filho. O passado é eterno”
A importância de abordagens como as presentes em “Tudo é Rio” na literatura vai além de entreter o leitor; trata-se de trazer à luz questões profundas e, muitas vezes, silenciadas, como a violência doméstica, o abuso e as complexidades dos relacionamentos familiares. Em um mundo onde essas experiências são vividas por muitos, mas nem sempre discutidas abertamente, histórias como a de Dalva, Venâncio e Lucy desempenham um papel crucial. Elas nos forçam a confrontar realidades desconfortáveis, nos convidando a refletir sobre as cicatrizes invisíveis que carregamos ou que, às vezes, ignoramos nos outros.
Não somente isso, o livro prova sua importância ao dar voz a personagens femininas fortes e falíveis, que desafiam os estereótipos e oferecem uma visão mais honesta e multifacetada do que significa ser mulher em um contexto de dor e resistência. Ao se aprofundar nas camadas de amor, ódio, desejo e perda, a história nos lembra que a literatura tem o poder de transformar, de ampliar empatia e de nos fazer olhar para a vida — e para nós mesmos — com mais compaixão e compreensão.
E, ao tratar de temas tão densos, Carla Madeira cria um espaço de acolhimento, onde o leitor pode encontrar sua própria catarse, entender que o rio da vida, com suas águas turbulentas e seus momentos de calmaria, é feito de escolhas, erros e, sobretudo, redenção.
Encaminhando para o final, “Tudo é Rio” tem uma história potente, poética e imagética. Na construção de personagens, longe de serem maniqueístas, a autora se aprofunda na complexidade deles e nos extremos que regem suas vidas, como amor e ódio, acolhimento e abandono, felicidade e desencanto.
Carla escreve com a alma de quem entende as dores e alegrias da existência, e isso a torna uma voz essencial para a literatura nacional contemporânea. É uma escritora que se aproxima do leitor de forma honesta e profunda, criando histórias que nos fazem repensar nossas próprias vidas, como se cada romance fosse um espelho. E talvez seja isso que a torna tão singular: a capacidade de transformar palavras em emoção, histórias e experiências.
Assim, “Tudo é Rio”, de Carla Madeira, é uma obra que transcende o papel, flui como a própria vida, com suas correntes imprevisíveis, que ora nos acolhem, ora nos arrastam. É um livro que fala de amor e de dor, mas sobretudo, de redenção — aquela que surge do encontro das águas mais turvas com a luz da esperança. Os personagens de Madeira são como margens de um rio: moldados pelo tempo, pelo luto, pelo perdão e pelo caos. Cada página nos lembra que a vida segue, incontrolável, e cabe a nós acolher suas marés, por mais avassaladoras que sejam. Assim, é um convite ao mergulho nas profundezas de nossas próprias emoções, e ao final, somos transformados, como as pedras polidas pela correnteza.
Por fim, a obra é recomendada a leitores que buscam uma experiência literária profundamente emocional, marcada por reflexões sobre o amor, o perdão e as complexidades humanas. É ideal para quem aprecia narrativas intensas e personagens multifacetados, que enfrentam dilemas universais e existenciais. Leitores que se interessam por histórias que exploram as nuances do sofrimento e da redenção, sem respostas fáceis, também encontrarão muito valor nesta obra. Além disso, é uma leitura impactante para quem gosta de romances poéticos e imagéticos, que evocam a beleza e a brutalidade da vida de forma sensível e poderosa.
E se a citação inicial e as tantas outras ao longo desse texto ainda não forem suficientes para captar a grandiosidade de “Tudo é Rio”, deixo uma última, também extraída diretamente das páginas do livro:
“É a vida, como metáfora de um rio, tudo traz, tudo leva, tudo lava.”
Carla Madeira, Tudo é Rio.
Que texto excelente, uma verdadeira obra-prima, expressado com precisão a profundidade e a intensidade emocional que “Tudo é Rio” evoca. A maneira como a escrita flui, equilibrando delicadeza e força, a sutileza com que as palavras são escolhidas e a clareza das ideias transformam essa resenha em algo quase poético, é uma leitura cativante, que faz jus à grandiosidade do livro que retrata. Parabéns ao escritor dessa resenha, ficou mais que perfeita!!
Você conseguiu transmitir o sentimento que é o livro “tudo é rio”. Amei a resenha e concordo plenamente com suas palavras!!