Por Carol Reis
Muito Além do Cidadão Kane é um documentário britânico dirigido por Simon Hartog e exibido em 1993 pelo Channel 4, emissora pública do Reino Unido. O filme traz uma análise contundente das relações entre a mídia e o poder no Brasil, com foco na figura de Roberto Marinho, jornalista, empresário e proprietário do Grupo Globo entre 1925 e 2003. O título estabelece uma relação direta entre Marinho e o personagem Charles Foster Kane, do clássico filme Cidadão Kane, de Orson Welles, uma obra que retrata a concentração de poder, as manipulações midiáticas e o isolamento que tais práticas podem gerar.
Hartog, ao escolher esse paralelo, sugere que Roberto Marinho encarna, de certa forma, o arquétipo do magnata que utiliza a mídia como instrumento de influência política, social e econômica, consolidando um verdadeiro império informacional no Brasil. Ao longo do documentário, o jornalista britânico denuncia a forma como a Rede Globo, sob o comando de Marinho, exerceu um papel central na formação de ideologias e no fortalecimento do capitalismo selvagem no país.
O monopólio da informação e a influência na política
Um dos pontos centrais do documentário é a denúncia do monopólio informacional criado pela Rede Globo. Para além da simples produção de conteúdo, o grupo detinha o controle sobre a circulação das mensagens, o que garantia um domínio quase absoluto sobre o que era discutido no Brasil. O poder exercido por Roberto Marinho ultrapassava a esfera da comunicação e adentrava a política, sendo determinante em eventos como o Golpe Militar de 1964.
Segundo o documentário, a Globo foi conivente com o regime militar, atuando para legitimar a ditadura e abafando vozes dissidentes. O famoso editorial do Jornal Nacional, exibido em 1984, é um exemplo emblemático dessa postura: enquanto o país pedia “Diretas Já!”, a emissora tentava deslegitimar o movimento popular, alinhando-se aos interesses do governo militar.
É importante compreender que, no Brasil, concessões de emissoras de TV dependem da autorização do Presidente da República, o que cria uma relação de dependência e troca de favores entre os grandes grupos midiáticos e o poder público. A Globo, como mostra o documentário, soube aproveitar essa dinâmica para se fortalecer, tornando-se a principal voz no cenário midiático nacional. A decisão de mostrar ou ocultar informações em benefício de aliados políticos revela o impacto da manipulação informativa na consolidação do poder hegemônico.
O papel das telenovelas e a construção do imaginário social
O documentário destaca o papel estratégico das telenovelas no sucesso da Globo. Inspirada pela TV Tupi e pelo fenômeno da novela Pantanal, a emissora investiu fortemente nesse formato, transformando-o em um dos pilares de sua influência cultural e econômica. As novelas não eram apenas entretenimento; elas se tornaram um meio de moldar o comportamento, a linguagem e os valores da população brasileira.
Exemplos como Roque Santeiro e Vale Tudo demonstram como a televisão penetrou no cotidiano, influenciando desde a moda até as expressões usadas nas ruas. Além disso, as novelas se tornaram um espaço privilegiado para a veiculação de publicidade, criando desejos e incentivando o consumo.
O conceito de fetichismo da mercadoria, desenvolvido por Karl Marx, ajuda a entender esse fenômeno. Marx argumenta que, no capitalismo, os produtos deixam de ser percebidos como resultado do trabalho humano e passam a ser tratados como objetos de desejo que surgem “naturalmente”. A televisão explora esse fetiche ao criar necessidades artificiais: se antes um indivíduo não sabia que algo existia, agora ele sente falta e deseja possuí-lo.
O documentário ressalta como essa lógica afeta não apenas o consumo material, mas também as aspirações sociais. Mesmo que a maior parte da população não tenha recursos para adquirir os produtos anunciados, a publicidade os insere no imaginário coletivo, tornando o consumo um objetivo, uma meta de vida. Assim, aqueles que conseguem consumir se tornam modelos, influenciando os que não conseguem. Essa dinâmica contribui para a naturalização das desigualdades sociais, já que o consumo passa a ser visto como uma questão de mérito individual, e não de desigualdade estrutural.
A Globo e o capitalismo selvagem
Outro aspecto importante abordado pelo documentário é o retrato do capitalismo selvagem no Brasil. O capitalismo, como sistema econômico, busca a valorização do capital, e aqueles que controlam os meios de produção acabam por dominar os espaços sociais e políticos. No caso da Rede Globo, o domínio dos meios de comunicação permitiu que a emissora influenciasse diretamente o imaginário social e político do país, garantindo vantagens econômicas e políticas para suas operações.
O capitalismo selvagem ocorre quando o acúmulo de capital e a exploração dos recursos humanos e naturais se dão sem qualquer responsabilidade ou regulação, resultando em danos ambientais e sociais profundos. O documentário denuncia como o monopólio da Globo foi utilizado para perpetuar esse sistema, beneficiando elites econômicas em detrimento das classes populares.
O caso das concessões de televisão é emblemático: em vez de serem distribuídas de forma democrática e transparente, essas concessões foram historicamente utilizadas como moeda de troca política, fortalecendo grupos alinhados ao poder e excluindo vozes contrárias.
O legado da Globo e a influência no presente
Mesmo com a ascensão das redes sociais e a fragmentação do consumo midiático, o Grupo Globo ainda exerce uma influência significativa sobre a sociedade brasileira. A emissora continua a pautar debates e a definir quais assuntos merecem destaque, mesmo que o público não esteja mais tão concentrado na televisão aberta.
Esse fenômeno é explicado pela teoria do agendamento (agenda-setting), que sugere que os meios de comunicação não dizem ao público o que pensar, mas influenciam sobre o que pensar. A Globo, ao escolher determinados temas e ignorar outros, continua exercendo um papel central na definição das discussões públicas.
Contudo, é importante reconhecer que essa influência tem diminuído com o crescimento das redes sociais e o surgimento de veículos alternativos. Plataformas como YouTube e Instagram permitiram o surgimento de vozes independentes, que desafiam o monopólio informacional e oferecem novas perspectivas.
O papel do jornalismo e a importância do senso crítico
O documentário Muito Além do Cidadão Kane nos alerta sobre os riscos de uma sociedade em que a informação está concentrada nas mãos de poucos. Desenvolver senso crítico é fundamental para que os indivíduos possam questionar as narrativas hegemônicas e buscar informações alternativas.
Cabe ao jornalismo assumir um papel ativo na luta contra a desinformação e o monopólio midiático. Veículos independentes e conteúdos contra-hegemônicos são essenciais para estimular a reflexão crítica e garantir que diferentes perspectivas sejam ouvidas.
O documentário, embora tenha sido produzido há mais de 30 anos, continua relevante porque evidencia como o poder da mídia pode ser usado para moldar comportamentos, ocultar realidades e consolidar interesses políticos e econômicos.
Muito Além do Cidadão Kane é mais do que uma crítica ao Grupo Globo e a Roberto Marinho; é um alerta sobre os riscos da concentração midiática em qualquer sociedade. O filme nos convida a refletir sobre o papel da mídia na formação das ideologias e a importância de uma comunicação plural, democrática e transparente.
A construção de uma sociedade mais justa passa necessariamente pelo fortalecimento do senso crítico e pelo combate às narrativas hegemônicas. Nesse contexto, o jornalismo e a educação têm papéis fundamentais na emancipação dos indivíduos e na criação de um ambiente informacional mais equilibrado.