Por Isadora Eleutério
Medida Provisória é um filme de drama e ficção científica, gravado em 2019 e lançado em abril de 2022, com direção e roteiro de Lázaro Ramos e produção de Daniel Filho e Tania Rocha. Inspirado na peça “Namíbia, Não!” (2011), de Aldri Anunciação, o filme retrata um futuro distópico em que o governo brasileiro decreta uma medida para obrigar cidadãos com “melanina acentuada” – ou seja, negros – a retornar à África. Esta “reparação histórica”, como é justificada pelo governo, se apoia na ideia de devolver essas pessoas ao continente de seus antepassados, ignorando suas reais identidades e nacionalidade brasileiras.
Desde os primórdios da colonização, a sociedade brasileira foi moldada por uma mistura de povos indígenas, europeus, africanos e, posteriormente, imigrantes de diversas partes do mundo. A miscigenação no país gerou uma complexa hierarquia racial que envolve questões de descendência, fenótipos, classe, entre outros fatores. O filme explicita como essas questões complexas que envolvem a identidade, o reconhecimento e a autodeclaração racial são, muitas vezes, resumidas aos traços físicos de um indivíduo – pelo menos no contexto brasileiro – como se estes definissem toda a história de uma pessoa.
Na trama, qualquer pessoa que apresentasse fenótipos relacionados à negritude seria considerada africana, ainda que seja brasileira. Esse entendimento deriva de uma generalização e da visão de uma relação direta entre fenótipo e naturalidade, que não reflete a realidade. Essa questão mostra como a cor da pele pode influenciar a construção identitária de um indivíduo que passa a se ver pelos olhos do outro. No filme, conseguimos observar o personagem Antonio (Seu Jorge), se recusando a ir para a África, reafirmando-se como brasileiro, enquanto outras pessoas apenas aceitam a identidade imposta a eles, devido à uma contaminação da noção de identidade pela imposição do Estado. Outro momento que marca essa questão é a cena onde um policial tenta separar uma mãe de sua filha alegando que a primeira seria negra e por isso deveria sair do país, enquanto a menina, por ser albina, não seria considerada negra. A cena retrata a complexidade da distinção racial no Brasil e como os indivíduos precisam reafirmar insistentemente a sua própria identidade, uma vez que a sociedade, a partir da simpĺificação e generalização das questões raciais, impõe a identidade para cada um dos indivíduos como bem entende.
Essa discussão está diretamente ligada ao colorismo, termo utilizado para classificar e ordenar os tons de pele, diferenciando os mais claros dos mais escuros, o que pode significar a inclusão ou exclusão de indivíduos em espaços sociais. Essa escala é internalizada pela sociedade e acaba refletindo na diferença de tratamento entre as pessoas, os papéis aos quais são delegadas, aos espaços que esses indivíduos podem ocupar, bem como todas as questões já conhecidas relacionadas ao racismo. Na medida em que as identidades são formadas e reafirmadas a partir do social e considerando que a cor da pele influencia diretamente na visão da sociedade sobre um indivíduo, ela vai, consequentemente, influenciar na construção identitária de uma pessoa. Há, inclusive, uma cena em que os personagens questionam o que é ser preto e falam sobre reconhecimento e autodeclaração, julgando uns aos outros a partir de seu próprio entendimento racial. Isso deixa claro que estamos, a todo momento, classificando e identificando o outro com base em nossa bagagem social, histórica e cultural.
Papel do Estado como garantidor de direitos:
Algumas das passagens mais emblemáticas do filme se passam no momento em que Antônio e André se vêem aprisionados em seu próprio apartamento. Após dias resistindo à violência e à expulsão do país, os homens foram atacados com armas usadas há anos contra os negros. Primeiro foi cortada a comunicação, depois a luz, água e comida o que fez os personagens a beirarem o delírio e a insanidade. Tendo em vista que tudo o que lhes foi tomado engloba, mediante à constituição, direitos humanos, é possível entender a posição do Estado em relação à quem está ou não amparado pelo documento.
A partir do momento em que a medida foi decretada, os direitos resguardados à todos os brasileiros foram, escancaradamente, negados aos negros. Essa posição oficial, influencia na própria noção de “cidadão”, de indivíduo pertencente à uma sociedade e resguardado por direitos definidos em um documento oficial. Nesse sentido, o Estado desempenha um papel fundamental na construção do sentido de “cidadão”, pois é responsável por estabelecer políticas públicas, leis e diretrizes que afetam diretamente a vida das pessoas. Nesse contexto, para além da definição das políticas públicas, está o cumprimento dela, que acaba sendo negado para certas pessoas de maneira pontual.
Questões raciais e interseccionalidade:
O filme é repleto de camadas que tratam diversas dimensões que envolvem o racismo no Brasil, dentre elas, a interseccionalidade entre gênero, classe social e racismo. A questão de gênero é tratada sutilmente no filme e é representada, na maioria das vezes, pela personagem Capitu (Taís Araújo). Logo no início do filme é perceptível a diferença de como os três personagens principais agem em relação ao racismo: André utiliza de sarcasmos e leves alfinetadas; Antonio utiliza a lei ao seu favor, e promove um embate mais direto e mediado pela constituição; já Capitú trata a questão de forma mais branda, tendendo até a ignorar e evitar se envolver em confrontos. Isso reflete a posição da mulher negra no Brasil, perante a hierarquia internalizada que leva em conta questões de gênero, classe e raça, a mulher negra é a última na escala hierárquica.
Diante disso, levando em conta as relações de poder que privilegiam o sexo masculino, essa parcela da população é levada à submissão, sendo a ela imposta o dever de mediar conflitos e aceitar calada a hierarquia tida como “natural”. Isso ocorre devido à construção social da personalidade e do papel da mulher, que está relacionado a questões como delicadeza, discrição, docilidade e obediência. Esse fato – que pode parecer obscurecido ao longo do filme – emerge em uma das cenas que se passam no afro-bunker. Quando o personagem Santiago Evaristo (Pablo Sanábio), homem branco, é avistado dentro do local, forma-se uma grande confusão. As pessoas passam a discutir se o personagem, pode ou não pode permanecer no local e partem para cima dele. Nesse momento, Capitu expressa sua angústia, sofrimento e cansaço. A personagem faz um monólogo sobre a exaustão de viver em uma sociedade racista e de ter que sempre ser mediadora de conflitos, se colocando em seu lugar e aceitando as violências aplicadas à ela. O ocorrido expressa justamente essa posição da mulher negra na sociedade brasileira e como o gênero influencia diretamente nas experiências de racismo sofridas pelos indivíduos.
Sobre a classe, é possível observar como um dos únicos personagens principais que consegue ser de fato ouvido pela população é Antonio, que, ainda que seja negro e de classe média, por ser advogado, ocupa uma posição simbolicamente superior aos outros personagens. Na cena em que os estudantes interpretados por Jéssica Ellen e Dan Ferreira estão protestando contra a implementação da lei, é observada uma reação violenta imediata dos policiais presentes no local, que não agem da mesma forma com Antônio, justamente devido à posição que cada um deles ocupa na escala hierárquica de profissões.
“Medida Provisória” é, portanto, uma boa indicação para refletir sobre as dinâmicas de poder, pertencimento e direitos no Brasil, revelando as camadas profundas da estrutura social e as hierarquias que continuam a influenciar as experiências de identidade e cidadania no país.