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Abolição e Orí: A Criação de um Imaginário Negro no Audiovisual Documental Brasileiro

Por Ian Pereira Silvares

Em 1988, o ator e diretor Zózimo Bulbul lança Abolição, um filme de 2h33min comentando os 100 anos da abolição da escravatura no Brasil, e um ano depois é lançado OrÍ, filme de Raquel Gebler com Beatriz Nascimento. Esses dois filmes instauraram o cinema documental com temática negra no Brasil. No ano de lançamento de Abolição, o cinema documental, apesar de ainda caminhando, já não era uma novidade no Brasil. Mas foi preciso 71 anos para que com o filme de Zózimo, os temas e problemas ligados ao povo afro-brasileiro pudessem ser não só discutidas em um filme do gênero, mas também ser produzido e dirigido por uma equipe quase que inteiramente preta. Zózimo sempre foi um homem à frente do tempo. Vindo de uma família de classe média do Rio de Janeiro e militante da causa negra no país, ele, pra além de sua carreira como ator, começou a dirigir seus próprios filmes em 1974, todos eles discutindo a temática racial no Brasil. Sendo assim considerado patrono do cinema negro brasileiro.

Seu projeto mais ambicioso talvez tenha sido Abolição, um documentário de 2h33min lançado aos 100 anos da abolição pra comentar o que foi feito do negro após a “libertação”. O filme perpassa por diversas situações e expressões culturais, sociais e religiosas bem como por entrevistas com intelectuais, personalidades e pessoas comuns pra criar um panorama das condições do negro na sociedade brasileira nesses 100 anos.

Por sua vez, Orí segue um outro caminho. Através da figura e das ideias de Beatriz Nascimento, o filme segue dois objetivos: mostrar as articulações do movimento negro brasileiro nesse período e construir uma ligação África-Brasil a muito esquecida.

Assim como Zózimo, Beatriz é figura importantíssima pra pensarmos a luta e o pensamento racial brasileiro. Formada em História e tendo escrito diversos textos, ela cria muitos conceitos e ideias que são estudados até os dias de hoje dentro desse campo de estudo.

Orí é facilmente seu trabalho mais conhecido. Sendo construído quase que 100% por uma narração em off de fragmentos de textos da Beatriz, lidos por ela mesma, com imagens de fundo, entrevistas e outras falas que complementam e corroboram suas ideias.

Esses dois filmes, a sua maneira comentam muito da posição e das articulações do negro no período, um indo pra um caminho mais conceitual e filosófico, ligado a uma linha de pensamento mais específico e pessoal (Orí) e o outro, segue mais enraizado na história, nos acontecimentos e fatos em uma proposta mais formulaica e didática (Abolição). Juntos, com suas diferenças e similaridades, eles criam um retrato diverso e pensam as possibilidades do passado, presente e futuro da população preta no Brasil.

A ABOLIÇÃO DE ZÓZIMO BULBUL

Ao lançar Abolição em 1988, Zózimo Bulbul já era um famoso ator, tendo já atuado no teatro e em filmes e novelas e começou a carreira de diretor em 1974 com Alma no Olho, considerado o pontapé inicial do cinema negro brasileiro e antes do longa documental dirigiu apenas mais um filme, Aniceto em Dia de Alforria em 1981.

Sendo desde sempre ligado aos movimentos negros da época, seus filmes sempre estiveram alinhados com o pensamento dos intelectuais da época e com os demais cineastas negros interessados em discutir as mesmas temáticas.

“Nos anos 1970 e 1980, as organizações e os artistas ligados ao movimento negro empreenderam uma revisão da história do negro no Brasil. É desse período o aparecimento de cineastas negros interessados em construir suas próprias imagens e narrativas sobre o Brasil.”

E é nessa ideia de uma revisão da história do negro que surge Abolição:

“Aí eu pensei, não, quero voltar pro Brasil, quero fazer um filme discutindo o Brasil e que foi o último país a abolir a escravidão, e aboliu o quê? Pra mim não aboliu nada, então vou discutir por que não aboliu, que não tiveram coragem de abolir, e eu vou discutir isso num filme.”

Oficialmente, Abolição começou a ser filmado no carnaval anterior ao lançamento do filme, mas ele vem de pesquisas feitas por Zózimo de muito antes:

“No dia 28 de janeiro de 2020, em uma tarde quente no Rio de Janeiro, tive meu primeiro encontro com Vantoen Pereira Jr. Ele foi um dos principais articuladores do filme Abolição (1988), pois participou de todos os processos, incluindo o início da pesquisa que começou por volta de 1977, em uma imersão na cidade de Búzios, localizada na região dos lagos do estado do Rio de Janeiro. Ele conta que Bulbul, que tinha acabado de voltar do autoexílio, hospedou-se em uma casa na praia Rasa, e começou ali o processo de escrita a partir de pesquisas realizadas para filmes anteriores, como Alma no Olho (1973) e Dia de Alforria (1981), juntamente com materiais de suas viagens e encontros pela África, Europa e Estados Unidos, registrando tudo em uma máquina de escrever.”

Antes também do filme também, em 1978, Zózimo idealizou e organizou a exposição 90 anos de Abolição no MAM, Museu de Arte Moderna juntamente com o IPCN, Instituto de Pesquisa da Cultura Negra com diversas ações voltados para a arte e cultura negra:

“Esse encontro, assim como seu envolvimento ativo com grupos e organizações que lutavam pelas questões da população negra, como por exemplo a Associação Cultural de Apoio às Artes Negras (ACAAN), foram importantes para dar início, de forma objetiva, ao processo de construção do filme entre 1978 e 1988, ano de lançamento da obra.”

Ou seja, o documentário Abolição é apenas o ponto final de anos de pesquisa e ativismo de Bulbul e também uma forma de expor tudo aquilo que coletou e guardou nesses 11 anos.

O filme segue uma estrutura mais concreta e mais fundamentada na história perpassando por diversos momentos, questões, espaços, pessoas e expressões culturais que comentam o negro brasileiro: a revolta da chibata, a divisão de terras e a luta rural, o seu manoel e suas memorias da escravidão, o teatro de mamulengos e os emboladores, etc…. criando assim um panorama amplo da situação negra em todo (ou quase todo) Brasil.

Algumas coisas são interessantes de se notar nesse filme:

1: Em nenhum momento do filme aparecem letreiros indicando o nome das pessoas. Isso é interessante por duas questões.

Primeiro, põe em pé de igualdade todas as pessoas do filme, seja ela quem for. Figuras públicas, intelectuais renomados, pessoas comuns, todos são necessários da mesma maneira pra se contar essa história, bem como pra falar que, pra além de toda questão individual, o que importa no final é o coletivo, a raça negra como um todo.

2: Para além da comunicação direta, ou seja da informação que é dita e mostrada, o filme se comunica de uma outra maneira, através da montagem.

Pela edição do filme, Zózimo e o montador do filme Severino Dadá também fazem diversos comentários sobre o que está sendo discutido. Quero destacar aqui os dois mais interessantes: A primeira, está no começo do filme, após a princesa Isabel declarar a abolição a cena dela de braços abertos, é entrecortada com cenas de um desfile de carnaval. Para Isabel e parte do povo, a abolição parece ter sido issso como se tivessem instaurado o carnaval, sem entender que a abolição não tirou o negro da marginalidade. Ao mesmo tempo, essa cena dá uma sensação de imobilidade branca e da mobilidade negra sobre o tema. Enquanto Isabel abole a escravatura e se mantem imovel como se fizesse um grande feito, o povo negro da a cara a tapa e vai fazer seu corre. E a segunda, logo após os créditos iniciais, é o corte do Benedito: em uma cena do teatro de mamulengos, a personagem da princesa Isabel retruca a fala do outro personagem com nomes que ficam “melhores a um negro”, após uma breve discussão o personagem chama por Benedito: “Vem cá Benedito”, e o filme corta para uma cena do mar com um barco entrando no enquadramento lotado por pessoas na proa até ocupar toda a imagem. Depois, de frente, vários homens comuns, esperam o barco parar pra saírem. Através desse simples corte, a fala do personagem e a imagem do barco com os homens dialogam, o conceito do Benedito falado por Isabel é concretizado nos homens no barco.

3 – Em todo filme há cenas que mostram a equipe, montando e desmontando equipamento e filmando.

Isso serve justamente pra mostrar que não só o filme discute temáticas pretas mas como também é produzido e dirigido quase que inteiramente por pessoas que são perpassadas por essas temáticas. Que não há só ali a vontade de se fazer um filme em cima desse tema, como muitos outros lançados na época e que aproveitaram esses 100 anos pra se lançarem, mas a necessidade de se contar sua história.

Passado tudo isso, é inegável pensar que, apesar do fracasso de público na época em Abolição, Zózimo Bulbul repete o que fez em Alma no Olho. Instaura um novo patamar das produções audiovisuais no Brasil, inaugurando assim um cinema documental negro em nosso país.

O ORÍ DE BEATRIZ NASCIMENTO

Um ano após Abolição, é lançado Orí, filme de Raquel Gerber que tem como fio condutor os pensamentos de Beatriz Nascimento. O filme se desenrola de maneira fluida, seguindo o fluxo das ideias de Beatriz. Sendo assim, o filme não se prende a uma fórmula, mas tem uma questão geral: reconstruir uma ponte entre Brasil e África que tinha sido deixada de lado e apagada. O que evidencia isso logo de cara é a fala inicial de Beatriz, e a fala de Manuel Zapata Olivella parece explicar a exata ideia do filme:

“Da África chegaram ao nosso continente centenas, milhares de povos de culturas diferentes. Mas América por certo unificou estas famílias, unificou essas nações, ao dar- nos um só destino em torno a luta comum pela libertação de nossa raça.”

Pensando essa ideia de retomar nossa conexão com a África, Beatriz cria (ou redescobre) alguns pensamos e dispositivos que podemos usar nessa trajetória, dois deles que eu destaco:

1 – Pensar a África como a Atlântida e a América como transatlântica: pelas palavras de Beatriz, “A África ainda é um continente enterrado, é um continente que a gente não conhece muito. É um saber congelado, é um povo que está congelado, nas nossas relações, nas nossas comunicações, no nosso inconsciente”, e transatlântica pois é um tipo de cultura e atitude atravessou o atlântico e fincou morada aqui.

2 – O conceito de quilombo, que passa a servir como uma ideia de qualquer ajuntamento negro de fortalecimento do próprio negro, tanto por uma questão de se relembrar essa tradição, quanto legitimar socialmente o presente ligando a tradição do passado. No filme, Beatriz faz a seguinte conexão: Estruturas bantu – Quilombo – Escolas de samba, terreiros e outras manifestações.

Pra além disso, o filme se esforça em tambem documentar as diversas movimentações do movimento negro na época, perpassando por vários encontros, simpósios e conferências, como a Mesa Redonda de Estudantes Afro-Brasileiros, a Conferência-Historiográfia do Quilombo e o FECONEZÚ, Festival Comunitário Negro Zumbi, mostrando não só que havia uma agitação política dentro do Brasil mas também como nos alinhavamos com as lutas que aconteciam em outros países e pessoas africanas e afrodiaspóricas.

Por último é importante dizer que assim como Abolição, o filme de Gerber e Beatriz tenta passar por diversas manifestações de cultura negra na tentativa de abarcar o máximo possível de expressões desse povo. A diferença em relação ao longa de Zózimo pode ser vista em dois pontos:

1 – A maneira como Orí abarca desde seu título, de forma bem mais profundas as religiões de matriz africana presentes no Brasil, e também, utilizando muitos de seus conceitos pra compor e explicar a tese de Beatriz. O filme de Zózimo apresenta entrevistas com algumas mães de santo, mas para por aí. Orí mostra os rituais e trabalhos e explica (ou não) a filosofia por trás de tudo.

2 – Orí captura um pouco dos bailes black e sua essência de empoderamento, enquanto que Bulbul nem os cita em seu documentário. Nisso, o filme de Bulbul acaba sendo mais tradicionalista e fechado em suas ideias e propósitos enquanto que Beatriz e Raquel abraçam também os “modernismos”.

Diferentemente de Abolição, Orí vive hoje um momento de redescoberta. Muitos artigos e pesquisas estão sendo feitas com base em seus 1h33min de duração. Seu estilo mais fluido e menos linear faz com que ele tenha um jeito muito mais próximo com a ideia que ele aborda, que é justamente discutir essa questão da cultura africana em nosso país, em nosso meio que muitas das vezes não pensa o mundo de maneira linear.

Abolição e Orí foram os dois primeiros filmes pensados por pessoas negras numa forma de contar histórias negras, sobre sua questão histórica e social em nosso país. E essa é justamente a importância desse pioneirismo que tem que ser visto nesses filmes. Através deles, a gente pode entender muito dos anseios e pensamentos dos intelectuais da época. Através também das diferenças deles, a gente pode perceber o quanto é amplo e diverso a ideia da cultura e da arte negra produzida no Brasil. Até porque, por mais que os dois filmes estejam produzindo sobre o mesmo tópico, a visão e a maneira com que eles abordam e mostram esses temas, muitas vezes levam a possíveis e diferentes caminhos.

E por eles terem todas essas diferenças, até na maneira de como eles contam essa história, de como eles pensam esses dispositivos presentes na cultura afro-brasileira, fazem que, em conjunto eles formem um mapa, a qual a gente pode usar para se guiar, para pensar um caminho para o negro no audiovisual documental brasileiro.

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